Se realmente acreditamos que a água tem valor intrínseco, isso será demonstrado pela maneira como agimos; nossas ações expressarão uma espiritualidade de respeito pelos recursos hídricos da Terra. Por outro lado, se abusarmos rotineiramente do uso da água, mostraremos um espírito interior que não respeita este recurso - independentemente do que possamos dizer sobre seu valor. Prestar atenção nas nossas ações nos coloca em contato mais próximo com nossa espiritualidade operante; a maior consciência do nosso espírito interior nos ajuda a identificar os pontos fortes de nossas verdadeiras convicções.
Juntamente com a identificação de nossas principais convicções, a consciência da espiritualidade humana nos abre para uma apreciação mais profunda do rico conjunto de significados espirituais que outras pessoas e culturas têm dado ao mundo natural. Este é um recurso valioso para nossa própria reflexão sobre o significado do mundo natural e nosso lugar nele.
Isto é especialmente verdadeiro quando nos referimos à água, uma característica do mundo natural que tem sido peça central de simbolismo espiritual e ritual religioso nas comunidades humanas há milhares de anos. Com notável regularidade entre as culturas humanas, a água tem sido usada para comunicar o valor sagrado da vida; a dimensão espiritual da purificação, proteção e cura; e o profundo significado do sofrimento e da redenção na vida humana.
Esta seção começa com exemplos selecionados de uso da água nas religiões do mundo e, em seguida, retorna à questão de nossa própria compreensão espiritual da água, com foco especial na tradição cristã. Nesta abordagem, seguimos as questões de espiritualidade apresentadas no estudo de caso do rio Ganges que iniciou este capítulo:
Como os seres humanos abordaram a natureza e o significado da água a partir de uma perspectiva espiritual?
Que aspectos de nossa espiritualidade poderíamos usar como ajuda no enfrentamento da crise global da água?
Os seres humanos há muito admiram a água. Seu movimento, suas formas, suas cores, seu poder - tudo isso chama nossa atenção, nos fascina e às vezes nos enfeitiça. Podemos olhar para um riacho que corre, ou para ondas que se sobrepõem, varridas pelo vento, e entrar num estado de calmo deslumbramento. As propriedades físicas da água que você estudou na seção Ciência - especialmente a fluidez, a solvência e o ciclo hidrológico - dão à água as características que evocam nossa reverência. Elas também explicam porque a humanidade frequentemente usa a água como um símbolo sagrado.
Os seres humanos muitas vezes têm tomado a qualidade refrescante e fluida da água como um símbolo do poder da própria vida. Muitos povos indígenas viram a água desta maneira por milhares de anos. Algumas das mais belas músicas sacras entre as tribos indígenas da América do Norte celebram o poder vivificante da água. Ouça Ronald Roybal, um índio Pueblo, celebrar esse poder em sua performance de Where the Water Cuts Through na flauta dos nativos americanos.
Como os índios Pueblo, o povo Navajo (Diné) do sudoeste dos Estados Unidos vê a água como o centro sagrado da vida, “o coração de tudo o que existe”. Líderes indígenas de todo o mundo estavam entre os líderes da UN Wings of Water Conference (Conferência Asas da Água da ONU) no Palácio da Paz de Haia, e criaram o International Inter-religious Spiritual Manifesto on Water (Manifesto Espiritual Internacional Inter-Religioso sobre a Água), que enfatizava o papel da água na vida espiritual dos seres humanos em todo o mundo.
Na história da criação da Torá judaica e da Bíblia cristã, o espírito de Deus primeiro "pairou sobre as águas” e Deus disse: “Que as águas produzam multidões de criaturas viventes” (Gênesis 1: 2, 20). No Islã, a água é a origem de toda a vida na Terra. O Alcorão diz que a água é a substância a partir da qual Deus criou o ser humano (25:54). Na Criação, até o trono de Deus “ficava sobre a água”. (11:7).
Aprendemos no estudo de caso do rio Ganges, no início deste capítulo, que o povo hindu na Índia considera o rio Ganges uma encarnação da deusa Ganga. Isso torna o rio Ganges um símbolo de vida e um lugar onde se pode lavar as impurezas espirituais, aproximando-se assim da fonte sagrada da vida.
De forma semelhante, a antiga tradição judaica convoca as pessoas em ocasiões especiais para limparem seus corpos espiritualmente por imersão em um banho de "mikveh". Para os muçulmanos, a ablução com água ou wudu é uma preparação obrigatória para a oração diária. O profeta Maomé declara no Alcorão: "Ó vós que credes! Quando vos dispuserdes a observar a oração, lavai o rosto, as mãos e os antebraços até aos cotovelos, esfregai a cabeça com as mãos molhadas e lavai os pés, até os tornozelos" (5:6) Estes são apenas alguns exemplos do uso da água para a purificação espiritual nas religiões do mundo. Tal como a fluidez, os seres humanos encontraram na solvência da água um poder de limpeza que vai além do corpo físico.
A água também tem sido associada à proteção espiritual em muitas religiões do mundo. No cristianismo católico romano, por exemplo, a água pode ser ritualmente abençoada e servir como um símbolo espiritual da proteção de Deus sobre uma pessoa ou grupo tocado por esta Água Benta. Simbolizando tanto a purificação quanto a proteção, os católicos muitas vezes mergulham os dedos da mão direita em uma fonte de água benta e fazem um sinal da cruz quando entram (purificação) e saem (proteção) de uma igreja. Muitos cristãos ortodoxos orientais também bebem uma pequena quantidade de água benta quando fazem suas orações matinais ou colocam um pouco de água benta em sua comida quando cozinham suas refeições.
Práticas sagradas de cura na maioria das religiões do mundo também envolvem a água. Durante séculos, os cristãos ortodoxos orientais identificaram certas fontes de água como possuidoras de poder de cura. Uma das fontes mais renomadas é a da Igreja de Santa Maria da Fonte, em Istambul, na Turquia. No local, em 450 D.C., o futuro imperador bizantino Leão I encontrou um cego sedento perto de um bosque. Enquanto procurava água para dar ao homem, Leão ouviu uma voz dizer: "Leão, entre no bosque, pegue a água que você irá encontrar e ofereça ao homem sedento. Então pegue lama e coloque-a sobre os olhos do cego. Depois, construa um templo neste local para que todos que vierem aqui encontrem respostas para seus pedidos”. Leão fez o que lhe foi dito e o cego recuperou a visão. Leão ergueu uma magnífica igreja no local cuja água é considerada milagrosa até hoje.
A tradição mais famosa de cura pela água no catolicismo romano é a de Nossa Senhora de Lourdes, na França. Durante uma aparição em 25 de fevereiro de 1858, Bernadette Soubirous ouviu da Virgem Maria que deveria cavar o chão até encontrar água e, em seguida, "beber da nascente e se lavar nela." Desde esta aparição, muitas pessoas afirmaram ter sido curadas ao beber ou banhar-se na água da nascente descoberta por Bernadette. Milhares de pessoas vão todos os anos à Gruta de Massabielle, no Santuário de Nossa Senhora de Lourdes, e seguem as instruções dadas a Bernadette.
As tradições religiosas também usaram o ciclo sazonal da água, a seca, a inundação, a chuva que dá vida e o arco-íris para simbolizar a experiência humana de mudar da separação de Deus para a redenção. Na antiga Torá hebraica e na Bíblia cristã, Deus enviou uma grande inundação na época de Noé porque “a terra estava cheia de violência” (Gênesis 6:11). Deus recompensou a lealdade de Noé com terra seca e uma aliança “entre você e eu e todas as criaturas vivas”. O arco-íris foi dado como um sinal desta aliança (Gênesis 9: 12-13). Mais tarde, os antigos hebreus novamente usam o ciclo da água para simbolizar sua experiência de passar da separação para a redenção. As primeiras palavras do profeta Elias anunciam uma seca pelos pecados de Israel (1 Reis 17: 1). Quando o povo de Israel cessa sua idolatria, Deus os abençoa com “uma grande chuva” (1 Reis 18: 41-45).
Também no Islã, a água é um símbolo para as etapas da jornada da vida. Especialmente no final da jornada, os crentes irão encontrar um jardim do paraíso, com riachos refrescantes e fontes de água limpa e fresca. Como afirma o Alcorão, os crentes desfrutarão de "rios de água não estagnada" (47:15) e "uma fonte a jorrar” (88:11-12).
Um ritual religioso com água que reúne todos esses elementos da vida, purificação, proteção, cura, separação e redenção, é o sacramento católico romano do batismo. A palavra sacramento vem da palavra latina sacramentum, que significa "um sinal do sagrado".
No sacramento do Batismo, os cristãos têm água derramada sobre eles ou mergulham na água para serem purificados do pecado e admitidos na comunidade cristã. No ritual católico romano, a comunidade ora: “No Batismo, usamos o dom da água, transformada em rico símbolo da graça que recebemos neste sacramento. No alvorecer da criação, o Seu Espírito soprou sobre as águas, tornando-as a fonte de toda a santidade. As águas do grande dilúvio tornaram-se um sinal das águas do Batismo, que pôs fim ao pecado e criou um novo começo para o bem.” Aqui novamente a água é um meio de comunicar a sacralidade da vida e situar o inevitável ciclo daquela vida dentro de uma antiga história de separação e redenção.
Enquanto a água tem sido vital para o simbolismo religioso e ritual ao longo da história humana, muitos membros das religiões do mundo negligenciam o respeito à água como um recurso natural finito. Muitos membros de comunidades religiosas, e também muitas pessoas que não professam qualquer religião, necessitam de uma conversão interior e espiritual para apreciar o valor da água.
A necessidade dessa conversão, ou “mudança de coração”, é essencial segundo a mensagem do documento jesuíta Healing a Broken World (Curando um Mundo Avariado), o documento que fornece a base espiritual para o livro Healing Earth. Healing a Broken World nos desafia, dizendo que "precisamos de uma mudança de coração. Precisamos confrontar nossas resistências interiores e lançar um olhar de gratidão à Criação, deixando que nosso coração seja tocado por sua realidade ferida e assumindo um forte compromisso pessoal e comunitário para curá-la." Podemos ver três ênfases nesta declaração: gratidão pela Criação, reconciliação com a Criação ferida e a ação que cura a Criação.
Na tradição religiosa cristã, uma verdadeira mudança de coração em relação ao mundo natural manifesta um profundo sentimento interior de gratidão a Deus pelo dom da criação, um dom que Deus considerou “muito bom” (Gênesis 1: 4, 10, 12, 18, 21, 25). Com a crença na bondade fundamental de toda a criação, Santo Inácio de Loyola encorajou os cristãos a "encontrar Deus em todas as coisas". O mesmo vale para a água. É um presente de Deus e um lugar para encontrar Deus.
No entanto, os cristãos abusaram do dom da criação de Deus. Isso não só fere a criação e insulta a Deus, mas também prejudica as pessoas, pois todos dependemos dos frutos da criação para nossa própria sobrevivência. Uma verdadeira espiritualidade de gratidão estimula a coragem necessária para reconciliar-se com os feridos. Healing a Broken World diz que temos a "tarefa urgente de reconciliação com a criação", o que também está ligado a uma reconciliação com os pobres, as pessoas cujas vidas são mais afetadas pela crise da água.
FONTE: Healing a Broken World - https://healingearth.ijep.net/